Vida e Missão neste chão

Uma vida em Açailândia (MA), agora itinerante por todo o Brasil...
Tentando assumir os desafios e os sonhos das pessoas e da natureza que geme nas dores de um parto. Esse blog para partilhar a caminhada e levantar perguntas: o que significa missão hoje? Onde mora Deus?
Vamos dialogar sobre isso. Forte abraço!
E-mail: padredario@gmail.com; Twitter:
@dariocombo; Foto: Marcelo Cruz

venerdì 19 maggio 2017

Chuva forte na rua

Dias de chuva forte em São Paulo. Como um símbolo da purificação profunda e necessária nesse País de deslavada corrupção.

Dona Francilene anda perdida nas ruas alagadas. Procura a estação do metrô, para voltar para casa. Veio da região de Brazilândia (um ônibus e dois metrô até aqui), em busca de um trabalho. Estava de diarista numa casa, mas sua ‘patroa’ lhe disse que não tinha mais como pagá-la, a não ser que se contentasse de um trocado ‘por fora’. 
Encontrou uma oferta no Butantã, mas seria para trabalhar de domingo a domingo... e todo dia quatro horas gastas no transporte urbano.

Enquanto caminhamos até o metrô, um senhor já idoso, de bigode branco, se ampara da chuva forte debaixo de um alpendre de cimento, fora do portão de uma casa. 
Tem sua uniforme de gari. Saiu à rua mesmo se desde cedo está trovoando, espera pacientemente: talvez melhore e ainda tenha tempo de dar uma limpada e desentupir as bocas de lobo do bairro. 
Quando retorno, uma hora depois, está ainda lá, fiel, porque ‘esse é meu trabalho’.

Penso, de volta para casa, nas delações premiadas, na facilidade com que, entregando esquemas e cúmplices, se alivia a responsabilidade e a imputabilidade pessoal e corporativa. Penso nos políticos que entram e saem de cena levianamente, nesse circo da irresponsabilidade. Trocam de partido, de aliados e de financiadores, surfam a onda e, quando já não podem mais, passam o poder aos afiliados, cuidadosamente treinados na tecelagem de suas redes de interesses.

O gari de bigode branco fica na rua, esperando que a chuva passe, fiel à sua responsabilidade.
Francilene voltará ainda à rua, ou para trabalhar, ou continuando em sua busca.
Essa gente que desce às ruas a cada dia merece nosso respeito mais profundo. Em nome deles, e junto com eles, vale ainda a pena lutar.
É a rua o ponto de partida de nosso grito por direitos, nossa chave de leitura para desmontar os jogos ‘políticos’ desse tempo obscuro, nosso ponto de retorno permanente, para não perder a fidelidade.
Para nós religiosos, é a partir das ruas que Jesus de Nazaré nos convida a construir uma igreja de gente organizada, no caminho da dignidade dos pequenos e do resgate dos excluídos.
Para os políticos de verdade (porque ainda existem!), é o vocabulário da rua que orienta as escolhas: inclusão, participação, iniciativa popular, garantia de direitos...

Só descendo às ruas, portanto, poderemos começar uma página nova de história. Mesmo se lá fora está ainda trovejando e faz frio...

lunedì 1 maggio 2017

Impressões ribeirinhas

Em 2014 a vida se interrompeu por três meses, em Calama.
A enchente do Rio Madeira, no primeiro inverno em que as usinas hidrelétricas de Porto Velho estavam operando, cobriu a maioria das casas, acima das janelas.
As famílias amontoaram-se no Colégio, lá no alto da vila, no pátio da igreja ou no meio do rio, refugiadas nas precárias balsas dos garimpeiros.
 
Ainda hoje sentem-se as consequências desse desastre: a força das águas destruiu os plantios das comunidades ribeirinhas, e a safra de bananas e açaí ficou prejudicada por anos.
Um dos frutos da enchente, paradoxalmente, foi um certo crescimento da comunidade de Calama. Há mais gente chegando, nesses últimos três anos, só que estão vindo das comunidades menores, à beira do rio, que não conseguiram resistir.
 
Haverá futuro para essa vida ribeirinha? O que será das margens do baixo Madeira daqui a dez, vinte anos, considerando o contínuo crescimento da capital, Porto Velho, o avanço da soja e a expansão da pastagem, logo atrás de uma sutil área de mata ciliar ainda preservada? Há muitas ameaças à preservação da floresta ao longo do rio.
 
A comunidade ribeirinha sente que seu tesouro de vida está sendo saqueado, como um vaso de barro rachado, perdendo água gota a gota, irreversivelmente.
Há gente que não consegue ficar longe de Calama, pelas raízes familiares, os laços culturais, os vínculos com o ritmo e a fartura da natureza. 
Outros decidem morar aqui por opção profissional, como o professor e o médico cubanos que trouxeram um novo respiro à comunidade.
Está bem quem tiver um emprego público: professor, enfermeiro, vigia, gari... Em regiões tão isoladas, essa é uma das maneiras para garantir a sobrevivência das comunidades e, com isso, a defesa da Casa Comum sem necessidade de saqueá-la.
 
Sou a favor de uma bolsa-trabalho coletiva, para todas as famílias que aceitem permanecer nesses territórios, com compromisso de organizar e assessorar um sistema interno de autogestão, que cuide de saúde, educação, assistência social, ordem e segurança, preservação do meio ambiente.
Na situação atual, é fácil para quem mora aqui e não tem recursos optar pelo garimpo no rio, despejando mercúrio na boca dos peixes que no dia seguinte estarão na mesa dele e de sua comunidade.
 
E qual o papel da Igreja, se for consciente e comprometida? 
Senti nesses dias a força da tradição religiosa, vivenciada no dia a dia da oração e das celebrações comunitárias: estreita relações, amarra as pessoas às suas terras (e rios), promove comunidade e autogestão, resiste à dispersão do espírito individualista. 
Também essa igreja de rua, que visita as casas, caminha em procissão, encomenda aos santos a colheita, a pesca e a proteção das enchentes, pode ajudar os ribeirinhos a preservar um pedaço de vida na Amazônia que não queremos perder!

Articulando as comunidades com dioceses, movimentos e instituições através da Rede Eclesial Panamazônica (REPAM), a Igreja é um ator importante no cuidado da Casa Comum a partir do estilo de vida das populações tradicionais que a habitam.